Cultura inclui elementos do confucionismo, resistência a adversidades e sacrifício pessoal
8.out.2020 às 23h15
Você está ocupado? Ni mang ma? Esse era o tema do capítulo 2 do meu primeiro livro de mandarim. Fiquei me perguntando o porquê de aprender isso antes de saber dizer bom dia, boa noite, meu nome é fulano, sou de tal país.
Mas não, de acordo com o manual, antes convinha perguntar se a outra pessoa estava muito ocupada. Do capítulo 1, tinha aprendido basicamente a dizer olá, nihao. Imediatamente depois: “Você está muito ocupado?”.
Pois aquilo tinha razão de ser, revelava um traço cultural importante que aos poucos fui percebendo. A valorização do trabalho duro na China e a glorificação de longas jornadas são muito enraizadas no país.

A cultura do trabalho aqui combina elementos do confucionismo, como dedicação, capacidade de resistir às adversidades e sacrifício pessoal. Segundo um ditado antigo, os céus recompensam os diligentes.
Essa lógica encontra terreno fértil na dita era da ambição que vive a China, na qual há um mundo de oportunidades, mas a corrida pelo dinheiro encontra competição extremamente acirrada.
Para completar, a valorização do trabalho e a busca por melhores condições de vida têm as bênçãos do Partido Comunista. Enriquecer é glorioso, teria dito Deng Xiaoping.
A relação dos indivíduos com a família e com a sociedade contribui para essa ética do trabalho. Os pais se sacrificam pela educação dos filhos e têm expectativas altas de que sejam bem-sucedidos.
A sociedade espera que a geração seguinte tenha uma vida mais confortável que a anterior. Essa sequência de gerações materialmente melhores é algo constante na China dos últimos 40 anos —e aumenta a pressão para que os jovens trabalhem duro, o que, ademais, é motivo de orgulho para a família.
No setor de tecnologia, por exemplo, é visto como normal o regime de trabalho 996 —das 9h da manhã às 9h da noite, 6 dias por semana. A piada com fundo de verdade é que a jornada, na verdade, é do tipo 007 —de zero hora de um dia até zero hora do seguinte, todos os dias.

De longe, pode-se ter a impressão de que a legislação trabalhista mais flexível ou a dificuldade de questionar condições de trabalho explique tudo.
De perto, e mesmo assumindo o risco da generalização, é impossível desconsiderar a importância da ética do trabalho na China, ignorar como aspectos culturais e sociais moldam a maneira como os chineses veem o trabalho e a corrida pelo sucesso. Lembro o dia em que assinei meu contrato de trabalho em Pequim. Logo após os papéis, fui convidada a tomar chá com uma autoridade da universidade. Depois de amenidades, fui perguntada se eu teria algum problema em trabalhar aos finais de semana. Saí do chá pensativa, o contrato recém-assinado não tinha nada sobre aquilo.
Mais de um ano depois, com um número razoável de domingos tomados por atividades acadêmicas, perguntei a um colega, afinal, por que sempre fazer esses seminários nos fins de semana.
O sujeito se surpreendeu com a pergunta por ser óbvia a resposta: durante a semana nós trabalhamos, ora. Estamos muito ocupados. Hen mang! Só aí entendi uma das lições básicas do meu curso de chinês.
Tatiana Prazeres – Senior fellow na Universidade de Negócios Internacionais e Economia, em Pequim, foi secretária de comércio exterior e conselheira sênior do diretor-geral da OMC.
Questões
1. O texto revela um componente cultural na competitividade do trabalhador chinês? Justifique.
2. É possível identificar, no texto, contradições no comunismo vivido na sociedade chinesa? Justifique.
Prof. Luciano Mannarino